Por Carolina Vaz, publicado originalmente no Jornal O Cidadão
O Luiz Eduardo Viana, morador da Vila do Pinheiro de 13 anos, tinha o hábito, desde criança, de ir com os pais ao teatro, shows e outras atividades culturais. “Antes ele era pequeno, a cadeira também, eu colocava ele no colo e segurava a cadeira na outra mão. Agora não dá mais”, conta a mãe, Valéria Oliveira Viana, de 38 anos. Agora bem maior, locomovendo-se apenas por cadeira de rodas e precisando lidar com as calçadas precárias, passarelas e toda a logística de ônibus, a circulação do Luiz diminuiu bastante. Por isso, Valéria se impressionou quando o filho chegou da escola contando, muito animado, que iria se iniciar um curso de teatro para PCDs na Maré mesmo, que era algo que ele gostava e queria participar. Hoje, o Luiz é um dos oito alunos do projeto Entre Lugares Maré Em CriAção, uma turma no projeto de teatro apenas para pessoas neurodivergentes e com deficiência, que acontece gratuitamente no Museu da Maré às segundas e quartas-feiras, desde o início de maio. O curso ainda tem vagas para mais moradores.
A inclusão no teatro
O projeto foi idealizado por Alexandra Arakawa, mais conhecida como Sandra, artista de áreas diversas do teatro há 25 anos. Tendo atuado com produção, cenografia e direção em iniciativas diversas, ela começou a pensar como fazer uma verdadeira ação de inclusão e acessibilidade no teatro, tanto para público quanto para artistas. O desejo ficou mais forte com a chegada do filho Ariel, de 7 anos, diagnosticado com autismo, e a partir do qual ela descobriu em si o mesmo diagnóstico. “Por acaso, tudo que eu já pensava eu fui ver na prática”, ela conta. Para Sandra, ainda hoje a acessibilidade é um ponto muito fraco nos espaços de teatro, não havendo cadeiras apropriadas, acessibilidade adequada e até mesmo um estímulo para que o público PCD compareça. Parceira do Entre Lugares há muitos anos, Sandra começou a elaborar a ideia com a equipe, mas o que tornou tudo possível mesmo foi o edital do Programa Olhos d’Água, do Ministério da Cultura, voltado para escolas de arte em instituições sem fins lucrativos. A conquista do financiamento abriu as portas para se começar a planejar a nova turma do Entre Lugares.
A equipe formada envolve tanto profissionais da arte e educação quanto da saúde, como os mediadores que são estudantes de fisioterapia. Na turma, pessoas a partir de 10 anos de idade que convivem com diagnósticos como autismo, paralisia cerebral e Síndrome de Arnold-Chiari, que pode comprometer a mobilidade. Não existe um “modelo pronto” de teatro para PCDs e neurodivergentes, o caminho que a equipe escolheu foi, nesta primeira etapa, conhecer cada um e cada uma: as habilidades, talentos, sonhos, desejos. Independente de atuação, a equipe enxerga a arte em si como uma ferramenta de expressão, aprendizado e consciência corporal para qualquer pessoa. “O teatro envolve milhões de possibilidades. Vai desde pintura para criar um cenário, desenhar, escrever… a ideia é que a gente possa explorar todas as áreas de uma peça de teatro”, conta Sandra. Unir as duas turmas do Entre Lugares e realizar uma apresentação de cenas curtas são algumas das ideias ainda em elaboração.
Conhecendo o mundo de cada um
Não foi só o Luiz Eduardo que se empolgou muito com o projeto; o convite também foi muito especial para a coordenadora Rita Grego. Atriz e pedagoga, ela é especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento e Altas Habilidades, e vem há muitos anos trabalhando com arte e inclusão. Rita conta que um dos focos do projeto foi fugir do padrão de público-alvo infantil que muitas iniciativas de inclusão têm: “Existem poucos projetos que pensam nessa criança neurodivergente que vai crescer e que precisa também de interação social, precisa se descobrir artisticamente e como cidadão”. Até agora, o trabalho tem consistido em aplicar atividades que os levem a se expressar, quase sempre em roda, interagindo, e o tema central está sendo a territorialidade. Querem estimular a turma a falar sobre sua relação com a Maré, o que gostariam que fosse diferente na favela.
No dia da entrevista, a arte-educadora Gabriela Luiz havia trabalhado com eles o tema da amizade. A partir da escolha de um amigo, eles foram estimulados a fazer desenhos e escolher músicas para falar sobre essa amizade em especial. Atriz e diretora de movimento há mais de 10 anos, Gabriela tem se empolgado nesse movimento de utilizar a metodologia do Entre Lugares com uma nova roupagem, entendendo as características de cada pessoa do grupo. Sua proposta no projeto é trabalhar a coordenação motora e a relação com o corpo, levando a bagagem da dança e acreditando que o teatro pode ser, sim, um ambiente de inclusão e acessibilidade.
Um projeto, também, para as mães
A coordenadora Rita conta que, até agora, todos os alunos são levados por suas mães, o que gerou também um movimento de troca entre elas e mostrou à equipe do Em CriAção a necessidade de acolhê-las. Segundo ela, será através do Teatro do Oprimido que, quinzenalmente, as mães terão também uma oportunidade de se expressar. Uma dessas mães é exatamente a Valéria, mãe do Luiz Eduardo. Ela conta que observa em várias crianças e jovens PCD a dificuldade de se expressar, principalmente na adolescência, quando acontece um afastamento entre pais e filhos. A Valéria percebeu que o curso não somente está ajudando o filho a falar sobre o que pensa e o que sente como, também, reconectar os dois. Para quem vivia com o filho uma rotina de casa para a escola e vice-versa, ela também está satisfeita de ver o Luiz fazer uma nova atividade.
“Quem não tem (deficiência) vai bater uma bolinha em outro lugar, vai tomar um sorvete e tal, mas para eles existe essa dificuldade. Não que vir até aqui não seja dificultoso, tem toda uma dificuldade de acessibilidade na localização mas a gente passa por tudo isso porque sabe que os benefícios são ótimos, é bem melhor do que ficar em casa trancado”. – Valéria Oliveira
Quem também não quer saber de ficar trancada em casa é a Pietra Freire Mesquita, de 10 anos. Falante, ela não tem problemas em se expressar, mas viu no projeto uma oportunidade “incrível”, nas palavras dela. “Eu gosto de viver nesse mundo da arte”, explica. Para a Pietra, o Em CriAção está sendo “tipo uma família de braços abertos”, e como ela quer um dia ser atriz, ela acredita que a partir dali muitas portas serão abertas. Mas para além da interação com os novos colegas e do seu desenvolvimento pessoal, Pietra vê o projeto como uma mensagem para a sociedade de que é preciso ir atrás das oportunidades.
“Eu quero dizer principalmente pras pessoas que não são deficientes, mas pras que são deficientes também, que procurem sim. Não adianta você querer e não procurar porque tem outros acessos perto de vocês e vocês podem acessar sim. Todo mundo tem direitos”. – Pietra Mesquita
O Entre Lugares Maré Em CriAção continua aberto a novas inscrições, basta que o/a responsável compareça ao Museu da Maré às segundas e quartas-feiras, das 15h às 17h, para conversar com a equipe. O endereço é Av. Guilherme Maxwell, 26, Maré. Para acompanhar o curso, veja o Instagram
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