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Profissional mareense atende alunos em iniciativa do CEASM com Psicólogos Sem Fronteiras

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  • há 4 dias
  • 10 min de leitura

Entrevista: Ana Cristina da Silva e Christóvão Carvalho

Texto por Christóvão Carvalho


Falar de saúde mental é abordar condições essenciais que proporcionam uma capacidade de lidar com pensamentos, sentimentos e desafios, e é sobre construir relacionamentos em geral. Em outras palavras, também quer dizer bem-estar.

E por mais que o tema esteja relacionado a situações “de nós com nós mesmos”, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental não se limita aos sentimentos individuais. Aspectos sociais, ambientais e econômicos também são determinantes.

No interior da favela, existem projetos que prestam apoio aos moradores, seja pelo atendimento psicológico direto, seja por ter espaços coletivos de escuta e cuidado mútuo. Pelo menos dois prestam acolhimento a mulheres, como a Resistência Lésbica da Maré, que possui a Casa Resistências e a Casa das Mulheres da Maré O Luta pela Paz presta apoio psicológico a seus atendidos; e o Espaço Normal realiza acolhimento para adictos em álcool e drogas.

Em janeiro deste ano, outro projeto se estabeleceu em prol do acesso à saúde mental: o Ceasm recebeu a visita de representantes do movimento Psicólogos Sem Fronteiras (PSF): o coordenador-geral, Roder Goes; o consultor Fernando Mesquita; e Felipe Cruz, facilitador do PSF para o Rio de Janeiro.


Representantes do projeto PSF visitaram o CEASM e o Museu da Maré antes de firmarem a parceira. Foto: Raysa Castro.
Representantes do projeto PSF visitaram o CEASM e o Museu da Maré antes de firmarem a parceira. Foto: Raysa Castro.

Como característica, o movimento opera em âmbito nacional, em empresas, comunidades e localidades de crise climática e humanitária. Tendo a Maré nos planos para estabelecer conexão, o PSF encontrou no Ceasm um lugar de confiança como base de atividades no território. Desse modo, a colaboração entre instituições ganhou vida e permanece ativa nas dependências da instituição mareense, no Morro do Timbau.


Atualmente, o projeto atende alunos do Curso Preparatório e Pré-vestibular (CPV), a partir de 9 anos, até maiores de 18. A psicóloga e mareense Mayara Evangelista, de 29 anos, concedeu uma entrevista ao jornal e contou como é a experiência de atender os jovens alunos.

Segundo ela, há uma tendência de pessoas e veículos de mídia externos acreditarem e divulgarem que a violência de forma literal seja o fator predominante para a fragilidade da saúde mental na população da Maré. Na verdade, os maiores desafios são outros. Assim, Mayara acredita que a experiência de ter sido criada no território auxilia para poder atender profissionalmente, de forma adequada, pacientes do território.

Ainda na entrevista, descobrimos que entre as maiores preocupações dos jovens está a insegurança financeira. A população está se preocupando cada vez mais cedo com o futuro. Estão pensando em profissões que rendam mais dinheiro em detrimento da vocação, pensam em ajudar nas despesas da casa e em como irão financiar seus próprios cursos e vestibulares.

Acompanhe a entrevista completa com a psicóloga:


O Cidadão – Você nasceu e cresceu na Maré?

Mayara – Sempre morei numa rua chamada Paraibuna, na Baixa do Sapateiro. Só recentemente me mudei para Ramos, mas continuo na Zona Norte.

O Cidadão  Como você chegou até o Ceasm e ao PSF?

Mayara – Eu já fui aluna do CEASM. Eu fiz preparatório aqui pra faculdade. Então, assim, como aluna eu já conhecia. E o convite chegou através da Maria Mônica, que é uma psicóloga lá do Luta pela Paz. Ela me indicou para fazer o processo seletivo. E aí tinham outros quatro psicólogos e eu fui a que foi selecionada.

O Cidadão – E como tem sido essa experiência?

Mayara – Eu costumo dizer que o CEASM, ele muda vidas. Se você conversar com qualquer aluno ali, qualquer um dos meus pacientes, eles vão dizer que eles entraram sem querer entrar, mas agora eles não querem sair. E se possível, eles querem voltar pra dar aula, pra trabalhar aqui de alguma maneira, porque a gente traz essa noção pra eles de mundo lá fora, que eles ainda não têm acesso. E às vezes o CEASM é o primeiro lugar que eles podem ir sozinhos.

O Cidadão – De que forma ser cria da Maré influencia o seu trabalho como psicóloga na própria comunidade?

Mayara  Eu acho que não teria como um profissional atuar aqui com saúde mental se ele não conhecesse a realidade daqui de dentro. Porque as pessoas lá fora têm a sensação de que o problema de uma pessoa que mora aqui na comunidade é a violência (…). É muito mais a violência emocional do que a violência que, de fato, a gente vive que o Estado mostra, que o jornal mostra.

O Cidadão  O pessoal de fora acha que a violência vai ser sempre o problema principal das pessoas que moram aqui dentro. Quais as principais questões desses alunos que você atende?

Mayara – É claro que a violência tem lugar, né? Eles (alunos) já entendem isso (…).  Mas os problemas aqui maiores são abandono, violência sexual e famílias desestruturadas. No sentido de… foi criado por outra pessoa, por cuidadores, e não tem contato com os pais, e não sabe como administrar isso emocionalmente. Por exemplo, agora eles estão preenchendo formulários de escola e tem muita gente que não sabe dizer, tipo, pai e mãe. Quem é seu pai? Aí cita o nome da avó, que é a pessoa que cria. Porque ainda está desconexa essa situação de família. Ainda não consegue entender.

O Cidadão  E como eles receberam essa oportunidade de acompanhamento gratuito? Como eles encaram o atendimento psicológico?

Mayara – A gente deixou eles bem livres. A gente fez um formulário para quem tivesse interesse preencher e querer estar aqui. Só que assim, para a nossa surpresa, foi quase 100% de aceitação. Então assim, o que eu entendo? É uma geração que já entende a importância de ter um lugar de escuta e acolhimento, que já entende a importância disso. E é uma geração que foi ensinada a ser silenciada, que “não precisa falar”, “não precisa chorar”, mas eles estão cansados. Diferente da nossa geração, que deixou isso passar, eles estão cansados de ser silenciados. E é aqui o lugar que eles encontram para falar o que eles quiserem. Eles falam, toda vez que eles saem, eles falam lá na coordenação “ai, podia ter terapia todo dia”. Eu falo, “gente, sou só uma” (risos).

O Cidadão – Qual a faixa etária que você atende?

Mayara: São 22 pacientes ativos, do 5º ano (9, 10 anos), do 9º ano (14, 15 anos) e do pré-vestibular (a partir de 18 anos).


Alunos do Curso Preparatório e Pré-vestibular (CPV) são contemplados com o atendimento psicológico gratuito. Foto: Raysa Castro.
Alunos do Curso Preparatório e Pré-vestibular (CPV) são contemplados com o atendimento psicológico gratuito. Foto: Raysa Castro.

O Cidadão – Existe diferença nos problemas trazidos por cada faixa etária?

Mayara – Basicamente a questão é a mesma. É querer sair daqui. Querer estar em outro lugar. Eles têm muito desejo de querer sair daqui. Eu digo assim, que o nosso direito enquanto favelado de ir e vir, ele é cerceado. Mas eles querem sair daqui pra eles poderem estar em outros lugares. Eles já entenderam que aqui dentro os pais não vão deixar eles circularem. Então eles querem passar pra uma escola… A mentalidade é “preciso passar pra uma escola pra eu poder sair de casa”. É isso. Conhecer além da Maré.

O Cidadão – E esse desejo acaba trazendo uma preocupação extra desde a infância?

Mayara – Com certeza. Por exemplo, os alunos aqui, eles são preparados para fazer provas de concurso, né? Mas eles estão preocupados em quantas provas eles vão fazer, porque alguma delas eles vão ter que pagar. Nem pra todas eles conseguem isenção. Então, assim, eu tenho pacientes aqui que já me falaram, “quero vender bolo de pote, quero fazer alguma coisa pra ajudar a minha mãe a pagar a minha prova”. Então é uma preocupação eminente (…). O ideal seria pensar em como fazer a prova, estudar e manter uma rotina de estudos, mas eles estão pensando em como pagar a prova.

O Cidadão – Esses jovens já falam muito sobre saúde mental?

Mayara – Eles já entendem muita coisa de saúde mental, porque é uma geração que já vem com esse assunto inserido. Eles, se você perguntar “qual que é a sigla? TDAH”, eles sabem. TOD, eles sabem. Burnout… eles falam sobre tudo. Eles sabem de tudo.

O Cidadão – Eles também costumam fazer autodiagnóstico?

Mayara – Eles já chegam aqui sabendo o que eles têm. Eles nem precisam de mim (risos). Eles vêm só me avisar, porque eles já sabem que… “Não, porque eu acho que eu tenho isso, porque eu vi no TikTok uma psicóloga”. Ou então, eles chegam assim com o vídeo: “Mas tia, eu vi esse vídeo aqui, o que você acha? Você acha que isso é verdade? Porque eu sei que na internet tem muita mentira”. Aí eles vêm aqui pra tirar a prova (…). Quando eles esquecem alguma coisa ou quando eles ficam confusos, aí eles falam “mal de TDAH”. É uma nova gíria agora que eles inventaram.

O Cidadão – Você acha que hoje em dia, com a internet, a gente tem nessa geração um entendimento melhor sobre o cuidado em saúde mental?

Mayara – Eu acho que a internet tem esses dois vieses, né? De trazer acesso à informação e democratizar porque, por exemplo, talvez a gente não tivesse tanto acesso à informação nas nossas épocas porque a internet era mais limitada do que esses jovens hoje têm. Mas também traz isso de confusão no sentido de: o que é verdade, o que é mentira e o excesso de informação.

O Cidadão – Você acredita que com o passar do tempo e as novas gerações de crianças tendo mais contato com informações sobre saúde mental, o bullying nas escolas diminuiu?

Mayara – Pelo contrário, eu acho que se expandiu. Porque, por exemplo, se a gente vai falar da gente há 10 ou 15 anos atrás na escola, a gente sofria bullying. Mas se você saía da escola, aquele bullying acabava.

Hoje não, você sai da escola e o bullying vai te acompanhando. Por quê? Tem rede social. O tempo todo. E eles estão online o tempo todo. Se você perguntar a qualquer jovem desses, tipo, “quem são seus amigos”? Ele vai abrir o grupo do WhatsApp e vai falar assim, eu tenho três grupos de amigos. Na nossa época, não (…). A diferença é que eles sabem que (o bullying) é errado, mas eles continuam fazendo.

O Cidadão – Nas redes sociais os jovens podem se deixar levar por estilos de vida também, por exemplo?

Mayara – Sim. Outra coisa que está bem agravante no caso dos jovens é: eles não querem ser CLT. Pra eles é horrível. “Deus me livre ser CLT”. A gente aqui doido pra ser CLT e todos os benefícios e eles estão “Deus me livre de ser CLT”. E eles não querem. Eles querem ser Virgínia da vida, quer gravar trap, quer ser influencer. “Qual é o curso que dá mais dinheiro?”, eles querem saber o que paga melhor. Eles não querem saber o que eles gostam. É o que paga melhor.

O Cidadão – No Museu da Maré, houve uma exposição temporária chamada “A Maré Sonhar”,  da artista visual e psicóloga Vanessa Américo. Na abertura da exposição a artista comentou que muitos mareenses confundiam direitos básicos com sonhos, você observa isso?

Mayara – Realmente, é que o nosso coordenador fala muito isso, que a nossa missão é fazer eles voltarem a sonhar, porque assim, na entrevista aqui, inclusive, pra entrar no Preparatório, a gente faz essa pergunta, né, de qual o seu sonho e tem gente que não sabe falar qual o sonho. Porque a gente é impedido de sonhar. O sonho deles é ir no shopping todo final de semana. Enquanto muita gente lá fora faz isso todo final de semana. É ir no cinema todo final de semana. É estudar numa escola boa que eles foram visitar. O que deveria ser direito deles.

(…) E assim, vamos pensar que eles estão lutando por sonhos que são os direitos básicos, não só pra eles, mas é pra toda uma família. Às vezes ele quer ser jogador de futebol porque ele sabe que ele vai ganhar um dinheiro pra mudar a vida de TODA a família. E aí, não tem como criticar uma pessoa que não ame o que faz, ela tá amando aquilo que ela faz e proporciona que é o básico. Infelizmente, é o básico.


Durante a exposição, os presente puderam registrar seus sonhos de futuro na obra de Vanessa Américo. Foto: Ana Cristina da Silva 
Durante a exposição, os presente puderam registrar seus sonhos de futuro na obra de Vanessa Américo. Foto: Ana Cristina da Silva 

O Cidadão – A síndrome do pânico está relacionada a violência?

Mayara – Sim. Olha, se você pegar, eu não vou lembrar agora, mas tem um estudo de caso que diz que favelados, moradores de comunidades, têm quase que 60% de chance a mais de ter síndrome do pânico. Por quê? Porque a gente está entregue à situação de violência o tempo todo. Eu, pra trabalhar aqui, eu acordo de manhã, eu não tenho direito de acordar e tomar um banho tranquilo. Eu pego o celular, olho algum aplicativo pra ver se tá tendo operação. Você tem uma rotina pra poder vir pro seu trabalho, que talvez se fosse em outro lugar você não precisaria. Então essa sensação de estar exposto à violência a qualquer momento te deixa ligado 24 horas. O que te causa ansiedade, síndrome do pânico o tempo todo.

O Cidadão – Sobre o futuro da parceria do PSF com o CEASM: Você acha que dando continuidade a esse trabalho tende a melhorar (o acesso a saúde mental na Maré)?

Mayara – Então, eu acho que aqui a gente tem nossos direitos negligenciados de todas as maneiras, inclusive de saúde mental. Você não consegue um neurologista com facilidade ali na Clínica da Família. Você não consegue… tem uma psicóloga na Clínica da Família inteira, coitada. Pra atender todo mundo é uma demanda enorme. Então assim, eu acho que um benefício do PSF aqui é ter mais um braço da saúde mental aqui dentro. Ainda que esteja muito inicial, mas a nossa intenção é que se expanda, não atenda só os alunos do CEASM, mas que atenda a Maré inteira. Essa é a nossa intenção. É uma primeira inserção para um projeto crescer. E essa é a intenção do projeto mesmo, estar em locais de vulnerabilidade para levar a saúde mental onde ninguém mais entra.

O Cidadão – Você acredita que uma geração de pessoas mais mentalmente saudáveis traz benefícios pro futuro?

Mayara – Sim… a gente pensa muito no coletivo, né? De cuidar de todo mundo. Mas se você não cuida do individual não tem como você cuidar do coletivo. Então, assim, fazendo esse trabalho de formiguinha individual, quando eles estiverem no coletivo, eles vão conseguir mudar muita coisa que a gente não conseguiu.(fim da entrevista)

*Durante a entrevista, a equipe do Jornal citou a exposição temporária “A Maré Sonhar”, que ocorreu no Museu da Maré. Clique aqui para saber mais sobre a exposição.


 
 
 

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