Por Carolina Vaz
Quando chega o 31 de outubro, em vários países do mundo se iniciam referências a assombrações, terror, histórias sobrenaturais… o Halloween, ou Dia das Bruxas, é um motivo para festas temáticas, decoração de casas e, para quem gosta, assistir filmes de terror. No Brasil temos nossos elementos do folclore, alguns nacionais como saci-pererê e curupira, e outros mais regionais. A Maré, como um bairro de mais de 80 anos, formado por pessoas de origens diversas, naturalmente também tem suas lendas. “Lendas” ou fatos, porque muita gente ainda afirma que são verídicas todas as histórias do Livro de Contos e Lendas da Maré, uma produção do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) lançada em junho de 2003.
“Todas essas histórias, dentro do seu contexto, são verdadeiras”, garante Antônio Carlos Vieira, um dos fundadores do CEASM e pesquisador da história da Maré há mais de 30 anos. O livro Contos e Lendas traz sete histórias, divididas em: duas do Morro do Timbau (A Figueira Mal-Assombrada e O Ensopado de Cobra), duas da Baixa do Sapateiro (A Festa de Casamento nas Palafitas e O Porco com Cara de Gente), duas da Nova Holanda (O Lobisomem e O bloco Mataram meu Gato) e um conto da região, chamado A Mulher Loira. Ainda há lendas que ficaram de fora, pois segundo Antônio Carlos no Timbau tinha até saci-pererê.
A obra foi elaborada a partir de oficinas da então Rede de Trabalho e Educação (RETEM): os adolescentes e jovens da oficina literária passaram 6 meses pesquisando e entrevistando moradores antigos para entender as histórias, e cada uma foi escrita na primeira pessoa, como quem testemunhou aquele evento. Houve também a oficina de produção gráfica, que gerou o projeto gráfico e as ilustrações. Além das sete histórias, o livro traz relatos de moradores que de fato viveram aqueles eventos, como o Seu Gelson, marido da Paloma, a cozinheira do Ensopado de Cobra que tirou a vida de três homens.
Bruxa e fantasma de um lado, lobisomem do outro
Pior do que o Ensopado, que só foi feito uma vez, era viver com medo do sobrenatural que circulava na Maré. No Morro do Timbau, a imaginação das crianças dos anos 80 era perturbada pela Figueira Mal-Assombrada, e quem conta isso é o próprio Antônio Carlos, o Carlinhos: “[As pessoas] ouviam gritos daquela árvore à noite, tinha história de bruxa que ficava rondando a árvore… e a favela estava se expandindo, quando começaram a surgir mais construções foram querer cortar galho da árvore pra levantar casa, e a história que surgiu é que as pessoas que subiam pra cortar morriam”. Passar perto da Figueira, à noite principalmente, era o terror para as crianças do Timbau.
Já os moradores da Nova Holanda tinham medo de algo mais ligeiro e imprevisível do que a figueira: o lobisomem. Em algumas noites, ouviam-se uivos da Rua Sargento Silva Nunes, em seguida barulhos de pé riscando o chão e correria. Segundo Dona Maria, uma moradora entrevistada na época do livro, de noite ninguém saía de casa, com medo.
Elementos regionais
As histórias de terror do livro Contos e Lendas não são das mais conhecidas por aí. Na verdade, as histórias que mais se popularizaram foram a do Bloco Mataram Meu Gato e também o Casamento na Palafita, uma história teatralizada pelos contadores de história do Museu em diversas ocasiões. Mas é importante perceber os elementos regionais dessas histórias: o Casamento na Palafita acontece na Baixa do Sapateiro, uma favela que até os anos 80 ainda tinha casas de palafita, diferentemente de outras partes da Maré. Também é lá que acontece o nascimento do Porco com Cara de Gente: num enorme chiqueiro que se transformou na atual Praça do 18 (número do porco no jogo do bicho).
A história do Bloco Mataram meu Gato é a que menos precisaria de testemunhas: é literalmente a origem do G.R.E.S. Gato de Bonsucesso, escola de samba até hoje sediada na Nova Holanda. Já a Figueira Mal Assombrada, uma árvore enorme que ocupava muito espaço, é uma história justamente da favela mais antiga da Maré, de um tempo em que as moradias eram bem diferentes, como conta Antônio Carlos: “O Timbau tem muita história porque antes de ser um morro ocupado por favela era um lugar já muito antigo, tinha casarões antigos, resquícios de fazendas, de chácaras antigas. E tinha casas com quintal, com muitas árvores, de famílias que tinham vindo do Nordeste, de Minas Gerais, um pessoal que contava um monte de história”.
A contação de histórias que mantém os contos vivos
O livro Contos e Lendas já se tornou uma obra raríssima, não podendo ser adquirido, mas em 20 anos vários foram os recursos para manter suas histórias vivas, e um deles é a contação de histórias. A mais antiga contadora é Marilene Nunes, da equipe do Museu da Maré, que faz esse trabalho há 18 anos. O conto mais popular é do Casamento na Palafita, para o qual ela já tem todo o figurino e o texto bem decorado, mas também faz muito sucesso a história do Bloco Mataram Meu Gato, que é contada sempre com um surdo e um estandarte temático. Segundo ela, a história do casamento é a que mais levanta testemunhos entre os moradores mais velhos: “[As pessoas] comentam sobre o casamento na palafita, que é o conto mais famoso. Elas falam: ‘ih eu já ouvi falar’”.
As histórias fazem muito sucesso com moradores de todas as idades, seja por mexer com o imaginário das crianças, que recebem a contação em suas escolas ou no Museu, seja por ativar as memórias dos mais velhos.
“Eu fico achando que eu estou contando a mesma coisa sempre, mas as pessoas falam ‘não, tem sempre uma mudança, sabe?’ (…) Eu gosto de contar porque qualquer lugar em que você conta as pessoas mais velhas têm uma memória desses contos”.
Marilene Nunes
Novos contos em construção
Tanto Antônio Carlos quanto Marilene acreditam que manter vivas essas histórias é muito importante para reforçar a identidade do bairro, a relação de pertencimento a partir de uma narrativa compartilhada por milhares de pessoas. Mas acreditam, também, que já é hora de atualizar esses contos e criar novos, a partir de acontecimentos mais recentes. A própria Marilene já fez isso: escreveu Casamento na Laje, uma versão do casamento na palafita, na mesma favela mas na laje de uma casa, com direito a cerveja “cracudinha” e ao som de Ludmilla. Outro contador, Matheus Frazão, escreveu sobre o Bloco da Gargalhada, um bloco de carnaval da Vila do João. “A gente está mudando, está trazendo esses contos, essas histórias pra época de hoje”, ela conta.
Já Carlinhos informa que haverá sim uma nova versão do Contos e Lendas, com algumas características: as histórias do livro de 2003 serão ampliadas; serão inseridas novas histórias, de eventos mais recentes na Maré trazendo elementos da atualidade; e haverá também contos de Manguinhos. Pode ser que entrem nessa edição contos dos pescadores da Baía de Guanabara, como os fantasmas da Pedra da Cruz, mas só vamos saber quando for lançado. Para ele, nunca é cedo demais para registrar uma história: “Na verdade a memória é algo que a gente constrói enquanto a gente está vivendo. Pra ser memória não precisa ter 50 anos”, defende.
Os sete contos e lendas presentes no livro foram encenados pela equipe do Museu e gravados como vídeos, podendo ser encontrados no canal do Museu da Maré no Youtube. O PDF do livro pode ser encontrado aqui.
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