Foto de capa: José Bismarck
Entrevistas: Carolina Vaz e Raysa Castro
Texto: Carolina Vaz
Publicado originalmente pelo Jornal O Cidadão
Quem chega no terceiro andar do Museu da República, no Catete, logo se depara com o que parece ser uma pintura na parede, uma versão gigantesca da placa Rua Marielle Franco. Essa pintura é, na verdade, o final da exposição Marielle Marés, organizada pelo CEASM e Museu da Maré e inaugurada na última segunda-feira (20). A exposição é composta por mais de 20 elementos, de diversas autorias, todos em homenagem a Marielle Franco e, em sua maioria, itens do acervo do Museu da Maré. O evento contou com a presença de nomes ilustres como Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, a deputada estadual e mareense Renata Souza, além de alguns dos artistas responsáveis pelas obras e parte da família de Marielle.
Silvio Almeida passou a tarde no Museu da República, grande parte dela dedicada a evento sobre a coleção Nosso Sagrado e o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Ao final, foi com sua comitiva conhecer a exposição Marielle Marés, guiado pelo diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) Luiz Antônio de Oliveira. A exposição se inicia com 11 telas de Marcondes Rocco, artista plástico que pintou várias personalidades, entre elas Marielle e sua família. Algumas telas são reproduções de fotografias e, em outras, ele homenageia outras mulheres negras de destaque.
Na segunda sala ocupada pela Marielle Marés, estão dispostas obras de demais artistas que pintaram a ex-vereadora: Will Barcellos, Marcela Cantuária e Pamela Couto de Alencar. Tem, também, uma enorme bandeira do Flamengo com o rosto de Marielle, criada pelo coletivo Flamengo da Gente e doada ao Museu da Maré. No corredor para a terceira sala encontram-se uma obra em pedraria representando o rosto da mareense e fazendo referência, com as pedras, à rua onde ela foi morta, além de uma coluna de placas de rua com seu nome, e colagens do tipo lambe-lambe, que cobram a resposta: quem mandou matar Marielle? A última sala já é composta por obras da exposição Retrato de Marielle, da artista queniana Ng’endo Mukii.
Manter viva a memória
O ministro Silvio Almeida elogiou a exposição e comentou a importância de fazer esse tipo de movimento que mantém viva a memória de quem se foi: “Preservando a memória, a gente preserva a vida. Nas religiões de matriz africana a gente respeita muito a vida, só que a gente respeita muito a morte também. Porque a morte para nós não é fim, a morte é simplesmente um retorno, e é um retorno no peito daqueles que permanecem”. Ele também reconheceu o assassinato de Marielle como um caso comparável aos de milhares de pessoas, jovens em sua maioria, que perdem a vida pela violência, e reforçou o quanto é fundamental acolher todas as mães e pais que perdem seus filhos nesse contexto.
Que isso que a gente está fazendo aqui sirva para ser um modelo de solidariedade, um modelo de amor, um modelo de fazer política. Fazer política é pensar sempre a memória, a verdade, a justiça.
Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e Cidadania
O sentimento de que a exposição era uma homenagem à luta de Marielle foi compartilhado por sua mãe, Marinete da Silva, que compareceu junto do marido, Antônio Francisco da Silva. Ela comentou a alegria de ver as obras de Marcondes Rocco, que se fazia presente na vida da família, e considerou gratificante ver a dedicação do Museu da Maré em preservar esse acervo sobre sua filha. Marinete lembrou, ainda, da conexão de Marielle com o acervo Nosso Sagrado, tendo participado do resgate de um dos itens e promovido eventos sobre intolerância religiosa ainda em sua candidatura em 2016. Agora, centenas de imagens de Marielle dividem o mesmo prédio com os itens sagrados. “Não tem como ver as obras e não se sentir viva”, resumiu sobre os sentimentos da ocasião. A exposição traz, também, a lembrança de que ainda não se sabe quem foram os mandantes da execução de Marielle. Para o artista Will Barcellos, as centenas de QUEM? carimbados em sua obra deveriam estar obsoletos, caso a pergunta tivesse sido respondida.
Não foi somente a memória de Marielle que retornou com a exposição, mas também a de Marcondes Rocco, o artista plástico responsável por grande parte das telas, falecido em 2021 vítima da Covid-19. Parte de sua família e membros do projeto social MRocco se fizeram presentes, entre eles o filho Müller Portela. Ele, que ainda não tinha visto todas as obras do pai sobre a vereadora, falou do sentimento de orgulho que o evento despertou: “É a primeira vez que eu estou tendo contato com todos os quadros. Foi uma experiência muito intensa, porque tem toda a representação da Marielle mas ao mesmo tempo é a memória do meu pai que volta. Estar em contato com os quadros dele e ver como as pessoas são cativadas pelo que ele fez me inspira muito”. Essa inspiração leva o jovem diretor do projeto social, no Morro do Conceito em São João de Meriti, a querer continuar o legado do pai, promovendo arte, cultura, cinema, assistência social e outras ações para a localidade.
Símbolos de luta
Fizeram-se presentes na abertura da exposição, também, pessoas com conexões especiais com os objetos ali. É o caso da deputada Renata Souza, que foi quem garantiu que a porta do gabinete de Marielle se tornasse parte do acervo do Museu da Maré, e agora parte da exposição no Museu da República. Para ela, a exposição revela a potência que Marielle é como representação da luta dos que defendem os direitos das mulheres, da população LGBTQIA+, de pretos e pretas, do povo da favela e da periferia, e a grandiosidade de seu trabalho deixa um recado para a humanidade, para que não se desumanize. A deputada ainda reconheceu a importância de os itens terem sido preservados pelo Museu da Maré, e agora dispostos numa exposição inédita: “Isso é muito representativo da nossa luta. Eu fico muito, muito feliz. De todas as formas de construção, de luta que a gente fez com a Marielle, eu não tenho dúvida de que o Museu da Maré é esse museu que reconta a história de tantas pessoas guerreiras da Maré, como Marielle”.
Grandiosidade também é a palavra ideal para Carlos Motta, fundador e ex-membro do Flamengo da Gente, um dos responsáveis pelo “bandeirão” de 6 metros de largura e 4,5 de altura que ocupa uma parede inteira da segunda sala da exposição. Ele contou que, logo que Marielle foi morta, num dia de jogo do Flamengo, o coletivo Flamengo da Gente começou a se mobilizar para fazer alguma homenagem a essa vereadora que era, para muitos como ele, uma companheira de várias lutas, além de rubro-negra. Já no dia seguinte, o artista Gustavo Berocan tinha produzido a arte que leva a frase MARIELLE PRESENTE!, que logo foi estampada no bandeirão e passou a ser levada para estádios, ginásios e protestos. Carlos foi um dos que sentiram o peso de carregar uma Marielle tão grande: o coletivo era xingado e hostilizado, e em muitas ocasiões tentaram rasgar e roubar a bandeira, que chegou a ficar “detida” por alguns dias no Engenhão. “Mesmo ‘apanhando’ muito a gente continuou levando essa bandeira de luta, que marca muito a nossa posição e as nossas ideias que acabam se cruzando com as da Mari também”, contou. Após vários danos, eles decidiram ceder a bandeirão, em definitivo, para o Museu da Maré, onde ele ficaria preservado e exposto como uma memória de luta.
A bandeira tem algumas marcas, ranhuras, rasgados que são das nossas lutas na Presidente Vargas, nos estádios, nos museus... ela tem cicatrizes que a gente acabou tendo com o tempo. Então é uma peça de luta.
Carlos Motta, fundador do Flamengo da Gente
Curadoria coletiva para homenagear uma amiga
A exposição Marielle Marés teve uma curadoria coletiva da equipe do Museu da Maré, com diversos responsáveis pela produção, projeto expográfico e outros elementos. O diretor do CEASM Luiz Antônio de Oliveira conta que, a partir do momento em que o Museu da República foi informado da possibilidade de sediar a exposição no mês de aniversário da morte de Marielle, tornou-se uma prioridade. A montagem levou algumas semanas, até finalizar todos os detalhes. “Foi trabalhoso mas o resultado acabou sendo muito emocionante e significativo, ainda mais tendo a presença das famílias do Rocco e da Marielle, e do ministro Silvio Almeida que fez uma imersão na exposição. (…) As pessoas acharam tudo muito interessante e esse é o padrão das ações que a gente tenta fazer”, contou.
Flávio Vidaurre, responsável pela programação visual, conta que a ideia da exposição nasceu primeiro pensando nas obras do Marcondes Rocco, mas uma vez que seria todo o terceiro andar do Museu da República ocupado, a equipe decidiu incluir demais obras do acervo e criar outras. Um exemplo de criação é a coluna de placas de rua Marielle Franco que tem, além da “tradicional” em azul e branco, uma verde e rosa representando a Mangueira, escola de samba da vereadora, e uma colorida representando o movimento LGBTQIAP+. Outro exemplo é a “placona”, pintada na véspera da inauguração, sobre um painel branco disponibilizado no espaço. A reprodução da placa tradicional foi feita por Eufrásio Torres Neto, pintor letrista da Maré.
Flávio Vidaurre contou sobre os desafios de levar tantos elementos de um museu para outro, fazendo a melhor composição das obras e até pequenas reformas no espaço anfitrião. Porém, a chance não poderia ser perdida. “Encontramos a oportunidade de fortalecer a luta por justiça sobre o assassinato covarde de Marielle e Anderson; resgatar o sentido de democracia através dessa memória e nos unir a milhões de outras vozes que, inconformadas, querem saber quem mandou o vizinho de Bolsonaro matar Marielle Franco”.
A exposição Marielle Marés fica aberta ao público de terça a sexta-feira, das 10h às 17h, e aos sábados, domingos e feriados das 11h às 17h. Está no terceiro andar no Palácio do Catete, localizado dentro do Museu da República, na Rua do Catete, 153, Rio de Janeiro. Pode ser vista até o dia 21 de maio.
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