Por Ana Cristina Da Silva – Publicado originalmente no Jornal O Cidadão
O VIII Festival de Cenas Curtas Maré em Cena contou com um corpo de jurados e a entrega de prêmios no Museu da Maré
Quem passou pela Avenida Guilherme Maxwell no dia 6 de agosto, por volta das 18h, pôde observar uma extensa fila que começou dentro do Museu da Maré e terminou subindo a rua Capivari. O motivo para se ter tanta gente em um só lugar foi o VIII Festival de Cenas Curtas Maré em Cena que, para além de lotar o Museu da Maré, também honrou os 10 anos de existência do grupo Entre Lugares Maré ao trazer 10h de entretenimento. 14 cenas curtas foram apresentadas para o público e para os 14 jurados presentes no local. O festival, que também contou com muita música, comida e bebida, se encerrou com a tão aguardada premiação, onde diferentes cenas, atores e atrizes disputaram em 11 categorias.
Organizado e executado pelos participantes do projeto Entre Lugares, a 8ª edição do festival Maré em Cena contou com a apresentação de 35 atores e atrizes que se dividiram para interpretar 14 cenas de no máximo 8 minutos. Os textos escolhidos foram clássicos do teatro nacional e internacional, como, por exemplo, a tragédia grega de Eurípedes, “Medeia”; a intrigante crítica de José Vicente, “O Assalto”; e a obra, escrita durante a ditadura militar, de Plínio Marcos, “O Abajur Lilás”. A professora do projeto, Renata Tavares, diz que a escolha dos textos foi pensada na vivência dos artistas e direcionada ao público: “Tem textos discutindo a questão de gênero, discutindo a questão de raça, discutindo a questão da diversidade sexual. Então, eu acho que é muito importante a gente trazer hoje esses textos pra cá, essas discussões, esses temas, pra fazer com que a galera da Maré também repense. Para que as pessoas que assistam, o público, saiam daqui com uma semente, com uma reflexão”.
Jurados e voto popular
Na primeira fileira de cadeiras estiveram os olhos atentos de 14 jurados, artistas com especialidades em diferentes áreas que foram convidados pelo Entre Lugares para decidir, em conjunto, os vencedores de cada uma das seguintes categorias: melhor cena (primeiro, segundo e terceiro lugares), melhor maquiagem, melhor figurino, melhor cenário, melhor ator, melhor atriz, melhor direção, melhor trilha sonora e ator e atriz revelação. Para o jurado mareense Wallace Lino, que dentre muitas coisas também é ator e dramaturgo, participar do festival foi uma grande alegria: “Para mim é muito importante esse convite tendo em vista que a maioria dos festivais que estão dispostos na cena cultural do teatro não estão dispostos para a nossa população, para os nossos corpos, para os corpos e a arte que são produzidas dentro dos espaços de favela”. Confira abaixo a lista completa de jurados:
“A gente tem jovens atores trabalhando nessa cena carioca. Jovens atores, em sua maioria pretos, em sua maioria favelados. Isso faz toda a diferença para quem faz cultura, porque a cultura precisa ser democratizada. Então estar aqui, hoje, fazendo parte desse corpo de jurados que de alguma forma escolhe algumas cenas que vão ser indicadas e posteriormente premiadas, é sem dúvida nenhuma um prazer muito grande (…) fazer parte disso é fazer parte de uma mudança da nossa sociedade. A gente só vai mudar essa sociedade através da educação e através da cultura, não tem outra forma”.
— Vilma Melo, atriz e professora de artes cênicas
Fora do alcance dos jurados, a cena vencedora da 11ª categoria foi decidida através do voto popular, onde a grande quantidade de pessoas presentes no local pôde escolher uma das 14 cenas como a sua favorita daquela edição. Além do grande número de familiares e amigos dos atores, estavam presentes figuras bem conhecidas como o influencer Raphael Vicente e a atriz Júlia Rabello. “Como influencer aqui de dentro, sempre tento incentivar as pessoas à arte, incentivar as pessoas a fazer o que eu faço. Tô sempre tentando aprender também, então eu tô ansioso para ver os jovens, as pessoas que estão no teatro, fazendo isso hoje aqui”, disse Raphael durante um dos intervalos do festival.
Cenas apresentadas
Para essa edição, os integrantes do Entre Lugares trabalharam em cima de 11 clássicos do teatro. Entretanto, textos como “O Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues; “O Rebú”, de Jô Bilac, e “O Abajur Lilás”, de Plínio Marcos, receberam duas cenas cada um, encenados por duplas e grupos diferentes. Algumas apresentações mantiveram-se fiéis aos textos originais, como foi o caso de “As lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder, enquanto outras receberam novos figurinos e linguagens para se aproximarem mais da atualidade, como visto durante a apresentação de “Um homem é um homem”, de Bertolt Brecht, onde os personagens trajavam uma roupa feita a partir de páginas de jornais; e também na 2ª cena de “O Beijo no Asfalto”, que trouxe o clássico para dentro da favela ao exibir um cenário com tijolos e um varal de roupas para representar uma típica laje carioca.
Os 35 atores vinham se dedicando ao estudo e à prática teatral desde o início do ano, com oficinas de dramaturgia e voz. Preparados pelos professores Tiago Ribeiro, Renata Tavares e pela coreógrafa Gabriela Luiz, os integrantes do projeto também trabalharam em cima de diferentes questões, como a iluminação, figurino e movimento corporal. Nas palavras de Renata “o festival é como se fosse um teste e a montagem a prova”, onde se avalia tudo o que foi passado ao longo do ano. O resultado final foi nitidamente positivo já que ao fim de cada apresentação as vozes dos artistas cessavam para dar espaço para os gritos e aplausos estrondosos.
Premiação
Para os 35 atores e as 14 cenas havia 10 categorias e 13 troféus. Em uma disputa acirrada, competiram artistas com mais tempo de projeto, como Vanessa Azevedo. Entretanto, novos rostos também marcaram presença, como Yago Cunha, que chegara no Entre Lugares no início do ano. Entre as cenas, havia dramas intrigantes que fizeram a plateia prender o fôlego, como “Medeia”, mas, apostando na comédia, também tiveram cenas como “Um Homem é um Homem” que, ao arrancar boas risadas do público, foi recompensado com o maior número de votos, conquistando o prêmio da categoria de voto popular.
Decidido pelo júri, o 1º lugar para a categoria de melhor cena foi ocupado por “Libertè”, escrita por Elísio Lopes Jr e encenada pela dupla Vanessa Azevedo e Yago Cunha. A cena refletiu sobre questões de racismo e liberdade, onde uma mulher preta, que também é mãe, discutia com um funcionário público que, por ser branco, levantava os extremos de uma sociedade desigual. A dupla, que teve apenas duas semanas para ensaiar a cena, demonstrou surpresa e gratidão. Segundo Yago, o segredo está em usar a arte para propagar afeto: “Eu até comentei com a minha parceira que quando eu estava em cena, assim que a gente foi agradecer o público, eu vi uma mulher preta chorando. Eu acho que ali foi o melhor prêmio, ela entendeu e acho que é sobre isso a nossa arte, né. É sobre afeto, é sobre tocar o outro”.
Em melhor trilha sonora, o prêmio foi para o elenco de “Gota D’água”, que contou com Luan Coccaro tocando violão ao vivo. Em atriz revelação a vitória foi compartilhada entre Beatriz Virgínia, que apareceu cantando Ne Me Quitte Pas na cena “As lágrimas Amargas de Petra Von Kant” e Maryana Oliveira que caiu na graça do público ao apresentar movimentos e falas cômicas na segunda versão de “O Rebú”. E enquanto Yuri Domingues conquistou o prêmio de melhor ator por sua excelente interpretação de Jasão em “Gota D’água”, o prêmio de melhor atriz foi entregue à Sheila Cintra, que brilhou no palco ao ir do prostíbulo de “O Abajur Lilás” direto para a tragédia Grega “Medeia”. Confira abaixo os vencedores das 3 melhores cenas do VIII Festival de Cenas Curtas Maré em Cena:
Imagem 1: 3ª Melhor cena: Medeia.
Imagem 2: 2ª Melhor cena: Navalha na Carne.
Imagem 3: 1ª Melhor cena: Libertè
Para conferir as fotos e os vencedores das demais categorias acesse a matéria no site do Jornal O Cidadão.
“Que bom que na vida existe o teatro, uma possibilidade de poder errar, se compreender e querer ser melhor. A gente erra todo dia e que bom que a gente erra, e que bom que a gente está aqui errando 10 anos. A gente disse ‘sim’ um pro outro uma vez e é a coisa mais linda isso, estamos durando 10 anos. A vitória é duração e a gente está durando, e a gente vai durar”.
— Tiago Ribeiro, professor do Entre Lugares
VIII Festival de Cenas Curtas Maré em Cena
Tendo a última edição presencial ocorrido em 2018, a oitava edição tornou-se especial por reunir artistas, familiares e amigos para a celebração da arte favelada em um ano onde também se celebra os 10 anos do projeto Entre Lugares Maré. Com 10h de duração, o festival começou a receber o público por volta das 18h no Museu da Maré, onde comidas e bebidas eram vendidas a todo momento. Quando as portas do galpão se abriram para o público, o local que parecia grande tornou-se pequeno para a quantidade de pessoas presentes que já afirmavam ali, ainda no início, o sucesso do festival. Ao ver o Museu da Maré cheio, Wallace Lino disse estar emocionado, mas ressaltou que aquilo era fruto do trabalho feito pelo projeto: “É um movimento de um trabalho continuado. Você não ouve o Entre Lugares hoje, você vem ouvindo o Entre Lugares, você vai vendo o movimento do Entre Lugares, e eu acho que esse movimento continuado é o que vai agregando o que aconteceu hoje”.
Para além das 14 cenas do festival, o Museu da Maré ainda recebeu 3 apresentações especiais. Tudo começou com as crianças e adolescentes do Projeto Teatro Zona Norte, do bairro Cavalcante. Com cenas dirigidas por Graciana Valladares, o grupo encantou o público ao levantar questões como a aceitação do cabelo de crianças negras e a realização de sonhos. Logo em seguida a coreografia Made in Museu, da turma de hip hop do professor Claudio Márcio contagiou o ambiente. Já pela madrugada, minutos antes de anunciarem os vencedores das categorias, os alunos da oficina de corpo e movimento do Museu da Maré apresentaram a coreografia AGBARA, da coreógrafa Gabriela Luiz que, por sua vez, apresentou todo o festival ao lado do ator Jefferson Melo. A dupla, além de anunciar as cenas e vencedores, interagiu com o público a todo momento, tornando o espaço descontraído e agradável.
Mesmo quando todas as cenas foram apresentadas e os jurados se retiraram para analisar suas opções no interior do Museu, a festa não parou. O espaço que antes serviu como palco logo se transformou em uma grande pista de dança após a música ser liberada. Com comidas e bebidas ainda à venda no local, os atores e o público aproveitaram o espaço enquanto aguardavam o resultado. Com os prêmios entregues, o VIII Festival de Cenas Curtas que havia começado às 18h de um sábado, se encerrou às 4h de um domingo.
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