Originalmente publicado no Jornal O Cidadão
Por Carolina Vaz
Vão se completar duas semanas do início do programa Cidade Integrada, ação de segurança pública do estado do Rio iniciada no dia 19 de janeiro nas favelas do Jacarezinho, na Zona Norte, e Muzema, na Zona Oeste. Nesse dia, a favela do Jacarezinho amanheceu invadida por 1.200 policiais, fortemente armados, após haver passado uma noite de tensão pela presença antecipada da polícia nas entradas da favela. No discurso oficial, o Cidade Integrada é uma iniciativa para “levar ações sociais, desenvolvimento econômico, infraestrutura e segurança para comunidades do Rio de Janeiro”, e tem o investimento de cerca de R$ 500 milhões de reais. O governador Cláudio Castro classificou como um programa não de pacificação mas de “retomada do território e de entrega para o povo dessas comunidades”, afirmando ainda que haveria diálogo constante com a população. Algumas das ações divulgadas para o Jacarezinho foram um mercado produtor, uma unidade de saúde, um batalhão da Polícia Militar, revitalização de praça e quadra, e limpeza e canalização de rios. E, na Muzema, um programa de regularização fundiária, uma nova unidade de saúde e uma nova escola.
Porém, as ações anunciadas não chegam perto da experiência dos moradores com a presença constante da polícia. Já cinco dias após o início do programa, eles fizeram um ato em protesto , diante de uma série de violações de direitos que já haviam vivido: invasão de casas sem mandado, ordens de abrir móveis e objetos, quebra de objetos pessoais, roubo de alimentos e dinheiro, assédio, entre outras. Até agora, além dessas ações da polícia, foram executados trabalhos como de limpeza de rio e apreensão de drogas, e foi anunciada a remoção de 800 famílias, sem a completa explicação de para onde irão.
Conversamos sobre o tema com Lourenço Cezar, geógrafo pela PUC-Rio, Mestre em Educação pela UFRJ e doutorando em Serviço Social também pela UFRJ. Aos 51 anos, além de atuar em movimentos sociais na Maré e fora dela há mais de vinte anos, o morador da Vila do João pesquisa no doutorado como a política de segurança pública do Estado atrapalha o acesso da favela a bens públicos. Lourenço ainda integra o grupo de pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisa Sociais da Maré (NEPS/CEASM).
Qual foi a sua reação assim que viu o projeto Cidade Integrada ser anunciado no dia 19 de janeiro?
No tempo que eu tenho de vida eu percebo que todos esses projetos de segurança pública estão atrelados a uma questão eleitoral. O governo Garotinho não conseguiu combater o tráfico. Ele teve até uma ideia legal que foi uma espécie de UPP que ele fez, que era não para combater o tráfico de drogas mas de armas. Então, até deu uns resultados legais mas aí a lógica conservadora do Estado de certa forma não abraçou a ideia porque achou que ele era defensor de bandido, e ele acabou abandonando o projeto.
Depois dele, a grande novidade foi a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que não era um projeto do [ex-governador] Sérgio Cabral. Era um projeto que nasceu com o Tarso Genro no Ministério da Justiça, dentro de um projeto muito maior chamado Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e esse projeto era muito legal porque ele tinha um lado que era investimento em formação de mulheres dentro da favela. Eu coordenei esse projeto, era chamado Mulheres da Paz. E tinha uma outra parte do projeto que também era para trabalhar com os jovens, entrada em mercado de trabalho. Na verdade o nome do projeto era polícia de aproximação. Como nasceu isso? O Sérgio Cabral foi procurar ele para conseguir dinheiro para comprar fuzil e caveirão. O Tarso Genro perguntou: sim, mas qual é o projeto? Não tinha, então o Tarso Genro fez o projeto. Dentro desse projeto do Pronasci tinha uma outra parte que era para beneficiar policiais e para formar novos policiais. Então os antigos policiais recebiam uma bolsa para aprender Direitos Humanos, para fazer vários cursos de reciclagem, coisas do tipo. E tinha um apoio também para os policiais poderem comprar casa, tinha uma linha de crédito específica para eles. E para a polícia de aproximação a ideia era que fosse um novo policial, não um que já estivesse em atuação. Mas o Sérgio Cabral pegou e modificou o projeto, chamou de UPP, muito focado nessa questão bélica da Polícia Pacificadora e as UPPs ele dividiu: uma parte das UPPs ele deu nas mãos dos policiais antigos e uma parte para os novos. Ele não gostava do projeto, mas depois que ele viu o sucesso que o projeto foi, da queda de mortes, ele começou a usar o projeto de forma eleitoreira. Acabou que nenhuma das UPPs vingou, e teve chances porque os primeiros resultados, em matéria de índice, eram muito bons.
Caveirão perto de praça da Nova Holanda, registro de 2006 por Bira Carvalho.
Tinha ainda a questão de adaptação das reclamações, mas eram reclamações que nem se comparavam às que estão havendo agora no Jacarezinho.
O projeto do Cidade Integrada, do Cláudio Castro, foi feito de uma hora para outra e, eu acredito, na ideia de chamar a atenção do Bolsonaro e do Guedes, porque o Guedes falou que ele tinha que vender a Cedae para fazer a renegociação das dívidas do Rio. O governador vendeu a Cedae e agora o Guedes não quer fazer a renegociação. E ele precisa da renegociação para a reeleição, pra fazer as pazes… Porque ele vai ficar muito queimado. Mas mandaram ele vender tudo quanto é empresa, ele foi vendendo e agora o Guedes não quer apoiar.
E o Cláudio Castro sabe que o Bolsonaro está precisando de apoio. Então ele provavelmente acha que algo que o Bolsonaro ia abraçar é justamente uma política de segurança que chamasse a atenção da elite. Porque ele já ia fazer isso de qualquer forma, só que eu acho que ele não ia fazer dessa forma toda atabalhoada como ele está fazendo. Ele primeiro invadiu pra depois mostrar o projeto, um projeto que não existe. Ele não sabe de onde vai sair o dinheiro. Ele está falando “todas as secretarias vão precisar de dinheiro pra fazer as coisas no Jacarezinho”. Ele não tem grana pra fazer o outro batalhão da polícia que ele falou que vai fazer lá no Jacarezinho e ele não tem nada. O que ele tem agora é só o discurso.
Todo dia agora vai se falar em segurança pública, por quê? É uma coisa que vende. A imagem dele vai estar o tempo todo na TV, vai fazer propaganda antecipada. É só divulgar uns resultados mínimos que podem acontecer lá, que eu não sei se vão acontecer, algum resultado positivo. Porque se fosse uma favela da Zona Sul, que chama mais a atenção da mídia, se fosse até a Maré… mas o Jacarezinho não é uma favela que atrapalha o movimento da Linha Amarela, da Avenida Brasil… o Jacarezinho, mataram 29 pessoas lá e o crime não parou por conta disso. Estou achando que ele está no desespero e corre o risco de daqui a três meses esse projeto acabar.
Entrada das polícias militar e civil no Jacarezinho em 19 de janeiro. Foto: Brasil de Fato / Reprodução.
Qual a sua opinião geral sobre esse novo projeto? Ele diz que dessa vez vai usar a inteligência, que não vai ser só presença de polícia. Começou um projeto de despoluição de rio, obras em escola… Eles tentam mostrar mudanças estruturais mas cantam vitória sobre apreensão de drogas e gente presa.
Parece até que não limpam aquele rio lá, e eles limpam… pode ter uma parte ou outra que não está limpa, mas aquele rio tem que limpar se não inunda tudo, e a gente não tem notícias do Jacarezinho com enchente. Ontem eles estavam compartilhando um banner dizendo “agora as pessoas vão poder tirar documento, segunda via…”
Como se não existisse justiça itinerante, equipamentos públicos, como se aquela favela estivesse mesmo à margem da sociedade.
Pois é. Mas a gente tem na favela um povo mais conservador, que acredita na força do homem branco que vai vir resolver as coisas. Ele pode ganhar votos se souber chegar com esse discurso. Se disser “amanhã vai ser Maré, depois de amanhã outro lugar…” ele pode conseguir votos assim. E a gente não pode esquecer que grande parte da população pobre favelada votou na milícia com medo do tráfico. Votou e vota, com medo do tráfico. Mas falando do Cidade Integrada, eu estou querendo entender onde ele (Cláudio Castro) vai conseguir conquistar a mídia. Porque ele não prendeu ninguém grande, eu acho que dificilmente vão sair índices do impacto na segurança pública do estado, redução de crimes. O que eu acho que ele vai fazer é, ao longo dos meses, ir estendendo essa malha, e aí ele vai pegar aquelas favelas ali de Manguinhos, uma por uma, e assim alcançar a mídia, mas números mesmo eu acho que ele não vai chegar a apresentar. Mas com certeza ele vai ganhar voto com isso.
O que ele tem pra fazer agora é isso, aproveitar esses 1200 homens que ele tem ali e ficar usando esses caras. Abandonar o resto do Rio de Janeiro, e com eles ir ocupando uma favela atrás da outra. Sem estrutura. No mesmo ritmo que aconteceu com a UPP. Eu acho que ele não tem um projeto claro na cabeça a não ser a questão eleitoral e atingir a mídia.
Por exemplo, ele anunciou que tem 800 famílias morando em área de risco… com que dinheiro ele vai tirar aquele pessoal dali e pra onde ele vai mandar? Não tem. Eu acho que ele vai tentar ficar requentando o assunto, transformando em pílulas, para manter a atenção da mídia.
Essa ação no Jacarezinho até agora não teve troca de tiros, nada que “escandalizasse” a população mas a gente conhece os relatos de vários abusos de poder. Invasão de casa, roubo, quebra, assédio. Como você acha que a opinião pública vê esse projeto até agora, se não teve troca de tiros e mortes?
Na UPP o [ex-secretário de segurança pública] Beltrame avisava: no final dessa semana vamos entrar na favela tal. Avisava para o tráfico poder ter tempo de sair. Só que o Beltrame tinha uma estrutura que permitia que ele, por exemplo, prendesse o chefe daquela favela num outro local. E lá eu acho que ele não vai conseguir fazer isso. E agora o Jacarezinho também está inaugurando a presença da Ouvidoria, na quadra do Unidos do Jacaré, aonde as pessoas podem ir fazer denúncia. Mas as pessoas estão reclamando que estão com medo de ir porque fica um carro da polícia na porta.
Mesmo assim, em relação à opinião pública, eu acho que a opinião pública vai apoiar esse projeto. Eu acho que todo mundo apoia porrada em favela, mais polícia em favela. E mesmo na esquerda, também tem uma galera que acha que favela precisa de polícia.
Caminhada contra o ‘Cidade Integrada’ no Jacarezinho, em 24 de janeiro. Foto: Fabiana Batista / UOL.
Mas tem a questão da chacina que foi há oito meses, e a população acha que agora o Estado vai se redimir, na mesma favela?
É estranho isso porque até parece que a chacina foi causada pelos próprios familiares [das vítimas], um pegou e matou o outro lá, parece que não foi a mesma polícia que está lá agora que matou as pessoas. E para a opinião pública isso passa meio que batido, e pouca gente faz esse questionamento. Os policiais que mataram 29 pessoas agora estão indo lá e dizendo que vão salvar essas pessoas?
E os policiais corruptos estão revoltados, porque estão lá atrás de dinheiro, “caçando tesouro” na favela, e não estão achando. Não acharam traficantes, drogas, e se acharam não falaram. E roubando comida, roubando 20 reais de morador.
Você vê alguma coisa de diferente entre a UPP e esse projeto agora, além de esse parecer mal feito?
Eu acho que a UPP foi bem planejada e foi estragada pelo governador. Esse agora não tem nem projeto, o que tem aí é um “factóide”, uma tentativa de chamar a atenção da mídia. Mas de estratégico, de estruturante não tem nada.
Parece que o projeto vai fazer conversas semanais com a população, eles estão simulando esse espaço de diálogo. Mas a gente não sabe como é.
Eu acho que é importante ter esse espaço, por mais que a gente não acredite tanto, mas esse espaço de diálogo tem que ser sempre reinaugurado, porque se a gente quebra as pontes sem colocar nada no lugar até a esperança vai embora.
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